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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Lâminas



Texto de Valéria del Cueto

A primeira fez tchan e me deixou muda. Muito duro sobrevoar minha praia e, antes dela, o contorno do Morro Cara de Cão, a Urca e a mureta (essa referência é só para os iniciados que frequentam um dos bares mais charmosos do pedaço), o Forte de São João, o Pão de Açúcar, a Praia Vermelha e, então, o outro lado da Pedra do Leme, com a ilha do Anel.
Daí pra frente haja coração para ver passar pela exígua janelinha do avião o Forte Duque de Caxias, lá no alto, dar a volta pelo costão e ver surgir, belo e inatingível, o meu lugar: a Ponta do Leme... Surgir e passar.

É aí que o tchan me emudece e meu coração vai ficando apertado na medida em se descortinam Copacabana, a Princesinha do Mar, o Forte de Copacabana, a Praia do Diabo, o Arpoador e Ipanema, com a Lagoa lá no fundo...

No alto do Sumaré o Cristo Redentor aparece e murmura uma oração com uma benção que termina dizendo: "Vá, mas volte milha filha dileta!". O que mais dizer além de "Amém!" e fazer o sinal da cruz quando o Leblon, a Niemeyer, o Vidigal, a Rocinha e São Conrado vão ficando para trás?

Já não sofro. A Barra da Tijuca nunca foi meu lugar e o tchun ainda demora. É só na chegada a Cuiabá. Mais especificamente, como diz um amigo querido, quando as portas da aeronave se abrem no garboso e mui prático Aeroporto Internacional Marechal Rondon de Cuiabá, que fica na vizinha Várzea Grande.

A partir daí, confesso, só recupero minha integridade física alguns dias depois. A mental demora mais ainda...
Antigamente, quando os vôos eram repletos de rostos conhecidos, a despressurização cultural e mental era mais rápida por que as notícias iam chegando aos poucos, pau-la-ti-va-men-te e já começavam a adaptação à nova realidade em plena travessia.

Hoje, não vejo absolutamente nenhuma chance de reconhecimento. Ao meu lado, um rapaz de ascendência oriental estuda um paper odontológico que fala de implante ou coisa que o valha. Nos bancos da fileira da frente a conversa gira em torno do desempenho da lavoura (soja, sempre ela!) e pecuária. Tudo com um sotaque de colono da "sera" gaúcha ou do interior do Paraná. É muita conexão para o nortão, e/ou noroeste, tipo São Félix e Vira Rica e pouca cuiabanice...

O tempo passa e o avião não sai, agora estacionado em Viracopos, o aeroporto de Campinas. Aliás, desliga o motor para não gastar o combustível. Atraso.

Para mim, um sinal. Mesmo sem nenhum representante físico, Cuiabá se faz presente. A cidade, que tem seu próprio tempo, obriga a todos a se adequarem a ele e a ela.

A tarde cai... o tráfego aéreo descongestiona e seguimos em frente. Cuiabá se aproxima. A comissária anuncia a temperatura local: escaldante. Não menciona que a umidade relativa do ar é desértica. "Me come, cavalo", diz o ditado familiar, (incompreensível para terceiros, mas significativo e perfeitamente adequado à situação em tela) que quer dizer: "o que não tem jeito, remediado está!"

Fazer o que? Cuiabanar é preciso e, cá entre nós, tirando o tchan e o tchun, pode ser muito divertido...

* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Esta crônica faz parte das séries Parador Cuyabano e Ponta do Leme, do SEM FIM http://delcueto.multiply.com

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