Ser e não ter ou ter e não ser?
Texto e foto de Valéria del Cueto
É mais do que uma questão, são várias posições e, em cada uma delas, seremos ou teremos um pouco menos.
Um exemplo bem básico: tenho ojeriza a rotina. É ponto pacífico.
Costumo escrever meus textos nos cadernos dos quais já contei algumas vezes parte da história: que me apego a eles, sofro quando estão chegando ao final de suas páginas, que os empunho em situações de espera – e escrevo em vez de me entediar-, ou em momentos e lugares em que quero esperar a vida, como na Ponta do Leme, no Rio de Janeiro, no chalé da travessa da piscina, sem número, na Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, por exemplo.
Também tem coisas sobre eles que pouca gente sabe e menos gente ainda teve a chance de comprovar. Um caso destes é que, neles, praticamente não há rasuras ou correções. Seja no que escrevo no caderno, seja no texto que será digitado e enviado a jornais, sites e blogs internet a fora. Dê um desconto à minha dislexia primordial, mas seja rigoroso nas idéias expostas em geral.
Várias vezes tentei alterar uma linha de raciocínio ou a forma de passar um ponto de vista. O resultado é sempre o mesmo. Acabo comparando e chegando a conclusão que o conteúdo e a clareza do manuscrito são superiores a nova proposta, imediatamente descartada. O caderno ficou assim, um repositório das primeiras, sempre melhores e criteriosamente guardadas crônicas do Sem Fim...
Lindo! Virou rotina e rotinas - você sabe - me incomodam profundamente. Ainda mais quando é dia de fechar o pacote da crônica da semana e a chuva me impede de ir buscar inspiração, etc, etc... Olho o computador e penso na dupla jornada: escreve a mão e, depois, digitar o texto.
A tal rotina virou motivo/argumento para pular uma das etapas. Por que se submeter a uma pré produção manual? Não vale usar a desculpa esfarrapada da inspiração necessariamente proporcionada pelo ato de mal traçar (e bota mal traçar nisso) as linhas deste texto em questão.
Ser vítima da rotina e ter o registro manuscrito da crônica. Não ser previsível e mandar bala nas letras frias do teclado e não ter o ser guardado no que considero os autênticos manuscritos da minha memória.
Me rendo à história, aceito a rotina em nome do futuro.Ele que fará com que, um dia quem sabe, meus herdeiros indiretos encontrem os meus cadernos e ali, através deles, possam acompanhar um pouco do que fui e o que se passou no meu Sem Fim...
Parece que fui agarrada na minha própria armadilha de não ser e não ter rotina. Mas só parece... Um dia, quem pegar este caderno vai se deparar, nestas páginas, com a quebra de uma ação que marca minha personalidade quase literária, a exceção de uma regra natural. Nunca, jamais em tempo algum escrevi com tantas rasuras e remendos.
Esta rotina foi para o espaço em meio a dezenas de espirais apagantes. Aqueles que um dia me tiraram pontos numa prova por que a professora os considerou “agressivos e pouco elegantes. “Quando você erra uma palavra simplesmente faça um único risco por cima”, me ensinou a rigorosa mestra.
Nunca a escutei. Prefiro não errar. Mas, quando erro, preciso de mais do que uma reta para encontrar um ponto. Preciso de tempo espiralando para substituir o meu ser e, então, ter aquilo que não quero perder.
* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Este artigo faz parte da série Ponta do Leme, do SEM FIM http://delcueto.multiply.com
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