Trecho do livro ''Ame e dê vexame'' - Roberto Freire
Preso ao conceito clássico e autoritário de que o amor é uma relação de troca complementar, ou seja, sistema de vasos comunicantes, eu deveria amar mais a pessoa que suprisse minhas carências pessoais em todos os planos, ficando, assim, atada indissoluvelmente a idéia de atração, amor e complementação `a de gratidão e dependência.
A idéia de que amar podia ser coisa completamente diferente deixou-me tão perplexo e apavorado porque, dentro do código de ética e de normalidade que regula a forma clássica de amar, qualquer violação dos limites de cada uma dessas maneiras adjetivadas de amar é punida com classificação de tipo pejorativa, marginalizante e alienante, podendo até ser caracterizadas como perversões patológicas ou transgressões criminosas.
Acho que consegui exemplificar bem essa situação num de meus romances, quando um jovem pede amor a um homem maduro, amor substantivo que ele, jovem, sabe exprimir e comunicar de forma nua e crua, porque é um protomutante, é uma pessoa que nasceu do futuro e não conhecia as normas de amar vindas do passado. Então, o homem maduro, atraído e fascinado pela originalidade e beleza do jovem, mas em pânico e preso aos preconceitos de sua formação burguesa, comportava-se assim, no diálogo com o rapaz, que naquele instante lhe pedia proteção:
— Proteger como?
― Com o teu amor.
― Meu amor?
Trecho do livro ''Ame e dê vexame'' - Roberto Freire
― O teu amor por mim... o teu amor pelo meu amor por você!
Nos olhávamos de frente, tensos os dois. Eu estava perplexo e indignado. Amor? Amor por um menino? Amor de pai? Amor de amigo? Amor de irmão? Amor de amante? Eu pensava e exprimia as interrogações em palavras orais. Ele não respondeu a nenhuma.
― Por que você não responde?
― Porque eu não sei, porque eu não quero nenhum desses tipos de amor de que você falou!
― E o que você quer, então?
― Esse aí...
E tocou meu peito com a ponta do dedo. Relaxou a tensão nele. Sorriu e continuou tocando meu peito com a ponta do dedo.
―Todo esse aí...
Queria mostrar com esse diálogo ficcional o que considero mais importante para se alcançar o amor libertário. Quando não se consegue amar com o amor semente, tem-se sempre muita dificuldade em aceitar que o amor vive de uma só e única energia que materializa esse sentimento de forma natural. Acabamos, assim, por nos perder e desorientar em face das formas variadas com que socialmente ele se apresenta como raiz, como caule, como folhas, como flores e como frutos. Os anarquistas aprendem a amar mais a possibilidade de amar que o próprio amor e os nossos objetos de amor. Possibilidade de amar, em anarquismo somático, significa liberdade.
Para sermos o que realmente somos, só possuímos um indicador: o prazer deviver. E ninguém vai negar ser o amor o melhor prazer e o mais seguro indicador de nossos caminhos. Entretanto, para conhecê-lo é preciso amá-lo, é necessário deixá-lo ser o que ele é, impulsionado por mecanismos genéticos originais e conduzidos por nossas opções livres e prazerosas.
Os nossos problemas para viver o amor de forma integral e natural não são dificuldades de natureza afetiva, mas sim libertária. Portanto, nada temos a temer do amor, pois ele está sempre em nós, inteiro e pronto para ser vivido quando for chegado o momento. Uma vez liberto, ele nos fará amar tão satisfatória e naturalmente como respiramos, procriamos, nascemos e morremos. O que geralmente nos falta é a coragem de exercer a necessária liberdade para isso."
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