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terça-feira, 31 de maio de 2011

'Liberdade', de Jonathan Franzen



Por Marcelo Moutinho*

O jornal “The Guardian” classificou-o como “o livro do século”. A apresentadora Oprah Winfrey incluiu a obra em seu prestigioso Oprah’s Book Club. O próprio presidente Obama devorou as mais de 600 páginas durante as férias. Além disso, o autor figurou na capa da revista “Time”, cuja chamada proclamava que Jonathan Franzen “nos mostra o modo como vivemos hoje”. Diante de tanto confete, uma pergunta se impõe: “Liberdade” justifica o frisson ou é mera fumaça midiática?

Descontada a profecia hiperbólica do “Guardian”, a resposta ganha feição positiva. O livro, ao qual o escritor se dedicou por nove anos, traz uma daquelas histórias com as quais nos enredamos a ponto de querer adiar o fim. Franzen evoca os chamados romances panorâmicos, que buscam descortinar o espírito de um tempo sob a perspectiva de um grupo de indivíduos. No caso de “Liberdade”, os Berglund.

A saga familiar atravessa quatro gerações e é esboçada em prosa realista, não linear. Walter e Pathy são um casal liberal de classe média e têm dois filhos, Joey e Jessica. Há um terceiro vetor: Richard Katz, músico com quem Pathy flertou rapidamente antes de se unir ao marido. Katz aparece como um dos elementos desesta$da aparente harmonia dos Berglund. O outro é Joey, cuja declarada simpatia pelo Partido Republicano ativa no pai, democrata até o último fio do cabelo, os instintos mais primitivos. “Ele tem o ar superior de quem frequenta Wall Street”, diz Walter.

A conjuntura pós 11 de Setembro está no centro do romance, embora a descrição se estenda por décadas. Conjugando os dramas pessoais de seus personagens com a pauta política, Franzen aborda temas como o conflito entre Israel e Palestina, o aquecimento global, a invasão do Afeganistão e a ofensiva contra o Iraque “para tomar as armas de destruição em massa de Saddam Hussein”, que recebe inflamada defesa de Joey.

Bem urdida, a trama se estrutura a partir do desenho de perfis que serão aos poucos desconstruídos. Walter, o ambientalista que faz questão de ir de bicicleta para o trabalho, envolve-se com mineradoras de carvão. Pathy, a mãe zelosa, expõe um inusitado talento para a perversidade. Katz, antagonista na contenda amorosa por ela, revela a intensidade de seu amor — um amor fraterno — por Walter.

Um dos méritos de Franzen é a densidade que dá aos personagens, tornando-os quase palpáveis, capazes de provocar dó, empatia, repulsa e mesmo fúria — estados que se revezam no sentimento do leitor. Na intenção de fazer o inventário social de uma época, o autor capta também a perplexidade de quem testemunha a mudança dos ventos, sintetizada por Walter quando se vê sozinho em um concerto de rock para jovens: “Era mais uma espécie de desespero diante do esfacelamento do mundo. Os EUA estavam travando duas guerras terrestres e feias em dois países, o planeta estava se aquecendo como um forno elétrico, e ali no 9:30, ao seu redor, havia centenas de meninos e meninas (...) com suas suaves aspirações, sua ideia inocente de que tinham direito — a quê? À emoção.”

A narrativa transita com leveza da melancolia ao humor, e a plausibilidade dos diálogos garante ótimos momentos, como aquele em que Walter, já na meia-idade e ao lado de sua sedutora assistente, toma a primeira cerveja da vida. Ou, ainda, a longa “DR” na qual Katz e Pathy tentam compreender afetos guardados em banho-maria, subitamente reaquecidos.

A destreza literária de Franzen, já atestada no anterior “As correções”, não impede, contudo, que recaia num erro primário. Sob o pretexto de uma recomendação do terapeuta para que anotasse as próprias memórias, em alguns capítulos Pathy assume a condução do relato. O registro formal, no entanto, é idêntico ao do narrador onisciente — exceto pelo fato de ela, com intimidade, chamar Katz de Richard. Pouco para uma alteração tão brusca.

Capital na cultura americana, o conceito de liberdade a que alude o título do livro se desdobra para além do viés político. Pairando sobre todo o romance em frases, placas, slogans, refere-se igualmente à esfera privada, e nem sempre como sinônimo de ventura. “A personalidade suscetível ao sonho da liberdade ilimitada também tende, quando o sonho desanda, à misantropia e à ira”, salienta o narrador ao comentar as diabruras do avô de Walter, que, na direção de um automóvel, desrespeita os demais motoristas. A indireta, com jeitão de autocrítica, é uma piscadela ao leitor. Como se Franzen sugerisse: assim como o velho Einar, certas nações às vezes abusam ao volante.

*Marcelo Moutinho é escritor e jornalista




(Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman, 608 páginas, 46,50 reais) Chamado de o “livro do ano” de 2010 por críticos dos Estados Unidos e da Europa, o aclamado quarto romance do americano Jonathan Franzen chega ao Brasil rodeado de expectativas. Novo queridinho do mercado editorial, com direito a estampar a capa da revista Time e a figurar no centro do círculo de leitura da influente apresentadora Oprah Winfrey, Franzen assina um livro de dimensões épicas. Aqui, se destacam três personagens: o roqueiro descolado Richard Katz, que agora foge da fama que buscava quando jovem, e o casal Walter e Patty Berglund, com dois filhos adolescentes. É a relação entre os três, marcada por paixão, amizade e traições ao longo de décadas, que está no centro do romance. E é a partir dela que Franzen vai questionar conceitos e valores deste início de século, num projeto literário ambicioso, que pretende abarcar a sociedade, representá-la e repensá-la.

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