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sábado, 1 de maio de 2010

OS DESFILES


DESFILES: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Por: Alcino Leite Neto (Folha de Sao Paulo)


A história dos desfiles de moda é fascinante. Tudo começa no final do século 19, quando o costureiro britânico Worth decidiu exibir em Londres um conjunto de manequins vestidos com as roupas criadas por ele. É, portanto, uma história já suficientemente longa, que valeria a pena narrar e estudar.

Há poucos livros a respeito. Um deles, que estou lendo, é o ótimo livro-catálogo "Showtime - Le Defilé de Mode", publicado pelo Museu Galliera, de Paris, com ensaios de vários pesquisadores. Mas não vou me estender sobre a obra neste post _deixo para uma próxima vez.

Com a licença do professor João Braga, talvez o mais dedicado estudioso da história da moda no Brasil, gostaria apenas de refletir um pouco sobre a relação entre público e privado nos desfiles.

Em suas origens, os desfiles eram realizados sobretudo nas "maisons" (casas comerciais) dos estilistas ou mesmo em suas próprias residências. Para a apresentação, os costureiros convidavam clientes (pessoa física), alguns lojistas, amigos e jornalistas, seja de moda ou de outra área, já de olho na difusão de seu trabalho na imprensa.

Sendo feito nas "maisons", o próprio nome já diz, os desfiles eram portanto eventos praticamente privados. O costureiro conhecia a maioria dos convidados que lá estava e os recebia num ambiente íntimo _uma sala ou um conjunto de salas_, onde ocorria a exibição das roupas.

A prática dos desfiles se irradiou a partir do início do século 20 e foi adotada pelos grandes magazines, não só na Europa, mas também nos Estados Unidos. Nesse caso, os desfiles ou eram feitos em salões ou no próprio espaço de vendas (houve quem os fizesse até no exterior das lojas, nas ruas). Outras iniciativas de exibição pública ocorreram, como as famosas apresentações no litoral francês, quando começa a ser difundida a moda praia. Realizados dessa maneira, nas lojas, nas ruas ou nas praias, os desfiles já não eram apenas eventos privados, mas continham a ambição de se tornarem acontecimentos públicos e "democratizarem", ou pelo menos difundirem, a moda.

A partir dos anos 60, os desfilles começaram a sofrer substanciais modificações e, mais ainda, passaram a se inserir diferentemente na sociedade. A crescente curiosidade pela moda, causada inclusive pela emergência do prêt-à-porter (roupas feitas em série), se refletiu na maior difusão das coleções nos meios de comunicação e, consequentemente, no anseio das mídias de toda parte do mundo em comparecer aos desfiles. Os próprios estilistas dos anos 60, inclusive no Brasil, perceberam o potencial dos desfiles como forma de espetáculo, ampliando os flertes da moda com o teatro, a música, o cinema e outras artes (flertes que vinham, aliás, de desde o início do século).

Mas é do tempo em que os desfiles eram acontecimentos privados e reservados a poucos que remontam algumas práticas até hoje adotadas nesses eventos de moda, como o hábito de a modelo desfilar na frente de pessoas sentadas em cadeiras, a ideia do convite em papel (e o RSVP - Repondez s'il Vous Plaît, ou seja, a confirmação da presença), a mitologia da "primeira fila" (onde estão os principais convidados), a sensação de privilégio que reina na plateia das salas e mesmo o comparecimento final do estilista na passarela, para agradecimentos, etc.

Quando Chanel fazia seus desfiles na sua "maison" da rue Cambon (que existe até hoje em Paris), para poucos e bons, em clima íntimo e elegante, não poderia imaginar que 50 anos depois a grife que leva o seu nome estaria exibindo a nova coleção no gigantesco Grand Palais, com a presença de mais de 2.000 pessoas de toda parte do planeta, amontoadas em várias filas de tablados _talvez um dos maiores espetáculos que é realizado em Paris anualmente.
Mesmo assim, as pessoas convidadas _a imprensa internacional, os compradores de todo o mundo etc._ continuam, em sua maioria, indo aos desfiles da grife Chanel vestidas da forma mais elegante que podem, empunhando seu convite nas mãos como um trofeu e trafegando no lugar com um certo ar de superioridade, mesmo se devem sentar lá no fundo da sala, ou assistir ao show em pé.

É como se o desfile da Chanel permanecesse um acontecimento privado, quando já se tornou um evento público, realizado inclusive em um palácio (o Grand Palais) que é parte do patrimônio da França, ou seja, do povo francês. Desfile feito, aliás, apenas difundir publicamente (na maior intensidade possível) uma coleção de roupas. O fato de ainda serem restritos, fisicamente falando, a um certo número de pessoas (mesmo que sejam milhares de convidados) não invalida a dimensão pública dos desfiles: a plateia "selecionada" passou a fazer parte dos próprios shows.

Hoje em dia, os desfiles, mais que servirem à apresentação de roupas para potenciais compradores, são espetáculos públicos, porque difundidos em larga escala pelos meios de comunicação, em todo o país, ou em boa parte do mundo, às vezes em tempo real. A imprensa de moda cobre os desfiles não apenas para reportar os novos estilos e formas. É também observadora e crítica de um espetáculo. Das celebridades presentes, passando pelos fashionistas convidados (e fotografados pelos sites na porta de entrada), até as roupas mostradas nas passarelas, tudo passou a fazer parte da construção da imagem pública de uma grife.

Desse modo, se estou correto em meu raciocínio, os desfiles, hoje, em plena era tecnológica, com as sucessivas e enormes transformações na moda e no estilo de vida das pessoas, vivem os seguintes impasses:

1) sendo atualmente espetáculos públicos, eles se mantêm, no entanto, presos a certos dogmas de organização e funcionamento muito antiquados, da época em que eram realizados sobretudo em ambientes privados, como, por exemplo, o hábito de dispor hierarquicamente os convidados na plateia;

2) embora importantes para a imagem atual das grifes, os desfiles seguem em geral fórmulas envelhecidas de exibição, como o uso generalizado da passarela reta, a apresentação uma a uma das modelos e até mesmo a música de fundo _usada de maneira simplória e rudimentar (apesar dos esforços, às vezes exagerados, dos DJs).

No Brasil, dada a nossa ligação tênue com a história de requintes e privilégios da alta costura europeia, talvez tenhamos condições de repensar e recriar de maneira mais livre a prática do desfile, espanando os bolores do passado, jogando fora as enrijecidas e já tediosas fórmulas e abrindo para a exibição da moda um campo todo novo de invenções.

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