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terça-feira, 1 de março de 2011
O Chaplin das criancas
Luís Fernando Veríssimo
Não faz muito tempo, passaram “Tempos Modernos” aqui, outra vez, e a gurizada foi ver e gostou.
Achou engraçado engraçado, não apenas engraçado, curioso.
Você e eu não temos mais condições de julgar um filme de Chaplin.
A obra de Chaplin faz parte do nosso patrimônio cultural e mental. A gente a reverencia mesmo sem ver. Gosta por obrigação.
Mas as crianças não tinham nenhum compromisso com Chaplin, mal sabiam de quem se tratava, e gostaram porque gostaram. E eu suspirei aliviado.
Uma vez, tínhamos visto juntos uma coleção de curtas metragens antigos — inclusive do Chaplin —, e a reação geral fora de profunda chateação. Minha também, só que eu no podia confessar. E saí da experiência com sombrias premonições. Acabara-se a inocência do mundo.
As pessoas se preocupam com o efeito da violência na sensibilidade das crianças, mas minha preocupação é um pouco diferente. Tenho medo que esta seja uma geração à prova de deslumbramento. Uma geração dessensibilizada não pela desumanidade que a técnica moderna transmite, mas pela própria técnica moderna. Certamente, não eram menos violentas do que os seriados de TV de hoje as comédias pastelão de 50 anos atrás, quando pastelão era apenas uma das muitas coisas que as pessoas levavam na cara. Mas a novidade do cinema — a primeira arte elétrica, o primeiro divertimento industrial — prevenia contra a banalização da violência. Todos os saltos dados pela técnica do entretenimento e da informação desde então nos encontraram dispostos ao deslumbramento. Lembro-me que quando a televisão mostrou as primeiras tomadas da Lua, diretamente da nave que a circundava, ficamos, os adultos, de boca aberta, emocionados, na frente da TV até que uma das minhas filhas entrou na sala e perguntou quando aquilo ia acabar, que ela queria ver um desenho animado.
Sinto muito que meus filhos não terão mais nada com o que se emocionar no desenvolvimento da técnica de divertir, mas talvez seja melhor assim. A técnica não quer dizer mais nada para quem nasceu na era da televisão. A técnica já chegou a Marte e não tinha nada lá, grande coisa. Mas a simples astúcia do corpo de um comediante, a sabedoria de um gesto feito há 50 anos e mal preservado em celulóide, ainda é compreendida e ainda faz rir. Talvez o fim do deslumbramento com a técnica seja o começo da verdadeira inocência, depurada e receptiva, e muito mais bem informada do que a nossa.
A tentação da pieguice é grande, nesta hora em que fazemos elegia não só de um grande artista como da nossa inocência superada, a melhor maneira de evitá-la é elogiar aquilo que, em Chaplin, não pertence à nossa geração, mas a transcende. Quem, como eu, se criou numa época em que Chaplin já era mais uma legenda do que uma celebridade do cotidiano, herdou mesmo assim todas as conotações que cercavam o seu nome, desde o primeiro encanto com o cinema da geração que nos precedeu, até a solidariedade política com o homem internacional e perseguido. Mas o que transcende a nossa época e hoje encanta as crianças é o que importa em Chaplin. O Carlitos vagabundo que para duas gerações simbolizou a vítima de um mundo cruel, revisto com outros olhos, não se mostra tão vítima assim. Carlitos dava tanto quanto apanhava, e ficava com a mocinha mais vezes que a perdia. A máquina não derrotou Carlitos, como a técnica não dessensibilizou nossos filhos, e a permanência de Carlitos é a prova das duas coisas.
Carlitos era um irreverente, tão irreverente quanto Groucho Marx, embora sem as suas frases, mas a minha geração insistiu em sentimentalizá-lo até o desfiguramento. Desconfio que as crianças das nossas crianças rirão de nós tanto quanto de Carlitos quando, no futuro, revirem os seus filmes e as nossas elegias.
“Banquete com os deuses”
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