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quinta-feira, 24 de março de 2011
Todo o Resto - Martha Medeiros
"Certo e errado são convenções que se confirmam com meia dúzia de atitudes. Certo é ser gentil, respeitar os
mais velhos, seguir uma dieta balanceada, dormir oito horas por dia, lembrar-se dos aniversários, trabalhar,
estudar, casar-se e ter filhos, certo é morrer bem velho e com o dever cumprido. Errado é dar calote, rodar de
ano, beber demais, fumar, se drogar, não programar um futuro decente, dar saltos sem rede. Todo mundo de
acordo?
Todo mundo teoricamente de acordo, porém a vida não é feita de teorias. E o resto? E tudo aquilo que a gente
mal consegue verbalizar, de tão intenso? Desejos, impulsos, fantasias, emoções. Ora, meia dúzia de normas
preestabelecidas não dão conta do recado. Impossível enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita dentro
de nós.
Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso autocontrole há um desespero infernal.
Possuímos uma criatividade insuspeita: inventamos músicas, amores e problemas, e somos curiosos,
queremos espiar pelo buraco da fechadura do mundo para descobrir o que não nos contaram. Todo o resto.
O amor é certo, o ódio é errado e o resto é uma montanha de outros sentimentos, uma solidão gigantesca, muita confusão, desassossego, saudades cortantes, necessidade de afeto e urgências sexuais que não se
adaptam às regras do bom comportamento. Há bilhetes guardados no fundo das gavetas que contariam outra
versão da nossa história, caso viessem a público.
Todo o resto é o que nos assombra: as escolhas não feitas, os beijos não dados, as decisões não tomadas, os
mandamentos a que não obedecemos, ou a que obedecemos bem demais - a troco de que fomos tão
bonzinhos?
Há o certo, o errado e aquilo que nos dá medo, que nos atrai, que nos sufoca, que nos entorpece. O certo é
ser magro, bonito, rico e educado, o errado é ser gordo, feio, pobre e analfabeto, e o resto nada tem a ver
com estes reducionismos: é nossa fome por idéias novas, é nosso rosto que se transforma com o tempo, são
nossas cicatrizes de estimação, nossos erros e desilusões.
Todo o resto é muito mais vasto. É nossa porra-louquice, nossa ausência de certezas, nossos silêncios
inquisidores, a pureza e a inocência que se mantêm vivas dentro de nós, mas que ninguém percebe, só
porque crescemos. A maturidade é um álibi frágil. Seguimos com uma alma de criança que finge saber
direitinho tudo o que deve ser feito, mas que no fundo entende muito pouco sobre as engrenagens do mundo.
Todo o resto é tudo que ninguém aplaude e ninguém vaia, porque ninguém vê."
[Martha Medeiros - Todo o resto]
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